Sunday, October 5, 2008

Guantanamera



No dia do Espetáculo Democrático, um filme sobre o país que mais desperta polêmicas neste (e em outros) quesito(s)...

Ah, a formatação deste blog está muito louca por mudanças que o blogspot fez por vontade própria!

Guantanamera foi a última parceria (sempre bem-sucedida) dos diretores Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabío, em decorrência do falecimento do primeiro. Ironicamente, é a morte (da tia Yoyita, de outros cubanos e, quem sabe, do próprio país) que desencadeia e perpassa toda a narrativa. Mas deixemos de lado as previsões a posteriori...
A famosa cantora filha de Guantanamo retorna já bastante idosa a sua terra natal e reencontra o grande amor de sua vida, que havia deixado para trás. Ela e o simpático músico local não conseguem disfarçar a emoção que sentem durante, e fogem da festa que estava sendo celebrada em homenagem à carreira bem-sucedida para recordar os velhos tempos. É demais para uma senhora com a idade tão avançada, e o resultado é seu falecimento.
Ao mesmo tempo Adolfo, marido da sobrinha da morta, tenta colocar em prática seu plano brilhante para resolver o problema de translado dos defuntos no país e vê chegada a sua grande oportunidade. Assim ele, a esposa e o “viúvo” farão, em companhia de um motorista trambiqueiro e boa praça, uma cruzada por todo território nacional até Havana.
Realizado em um período muito crítico da história cubana, serve de termômetro do momento de desencanto que se vivia na ilha então. As críticas e contradições estão na tela, nuas e cruas (mas nunca estetizadas).
Para começo de conversa, os defuntos não são os únicos a sofrer com a falta de transporte. O povo tem que se submeter – algumas vezes pagando – a caronas nas boléias dos caminhões, a venda de passagens rodoviárias pode ser repentinamente cancelada e um casal precisa literalmente se jogar na frente de um carro para que seja levado a um hospital a fim de que a mulher dê a luz (e é claro que o automóvel em questão é justamente um integrante do comboio funerário).
O mercado negro, característico da escassez conhecida durante o período especial – os anos subseqüentes à queda da União Soviética, se faz presente todo o tempo. Tony (teria sido esta mais uma escolha irônica?), o condutor, contrabandeia alho, banana e até animais vivos para a capital. Não se consegue comprar nada nas estradas sem dólares, mesmo eles sendo proibidos, e vê-se inclusive uma taberna ilegal, “mas muito decente”, onde ele, Gina e Cândido, já cansados de Adolfo, escapam para fazer uma refeição.
O apagão, outro conhecido íntimo dos cubanos nos anos 1990 também é explorado, ainda que de maneira bem mais sutil que os elementos já citados. E a burocracia que Alea critica desde A Morte de um Burocrata aparece mais uma vez como a grande vilã pelos inúmeros problemas do país. Apesar de todos os deslizes dos demais personagens (já que nenhum deles é unidimensional), Adolfo é o único com o qual em momento algum o público consegue se identificar. É, ainda, o único a ser repreendido pela canção que desempenha o papel de narrador.
No entanto, a passagem do filme na qual parece ficar mais clara a posição de seus diretores é a ontológica seqüência do dilúvio na qual se conta a história do fim da imortalidade na Terra. É preciso que os velhos morram, a velha burocracia seja superada, os jovens tenham mais poder e a humanidade se desengesse e volte a caminhar, a estar em movimento.
Tudo isso com uma linguagem que foge dos padrões do cinema político e que consegue envolver e cativar o espectador sem deixar de convidá-lo a refletir o que está vendo/ouvindo. Há uma história de amor arrebatadora, há a trilha sonora contando a história, há clichês de gênero, há diálogos muito bemescritos e muita ironia bem construída (inclusive destinada a própria maneira como os realizadores constroem a narrativa, como, por exemplo, quando Ramón brinca com Mariano afirmando que sua história com Gina parece coisa de novela).
Ao contrário de muitas coisas que li, acredito que esta não é uma obra anti-socialista, anti-castrista e a favor do projeto estadunidense para o futuro da ilha. Muito pelo contrário, é uma crítica contundente, mas feita de dentro, por alguém que dedicou boa parte de seu tempo e sensibilidade para contribuir com o aperfeiçoamento de um projeto que agora vê em crise. E que ainda consegue vislumbrar caminhos felizes apesar de tudo.
PS: Para os que pensam que Cuba é uma ditadura, fica a questão: como o ICAIC financiou este filme?