Sunday, April 26, 2009

De cierta manera


Em homenagem ao país que, mais uma vez, é o grande hit da Cúpula das Américas.

Sara Gómez, realizadora de De cierta manera (Cuba, 1974), é uma figura única do cinema latino-americano. Praticamente desconhecida mesmo entre os latinófilos, esta mulher foi a primeira diretora de cinema que filmou pelo Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos – em uma época na qual, ao menos pelas bandas de cá do Atlântico, este era um território basicamente masculino.
Para se ter idéia do que isso significava, basta dizer que durante décadas ela foi a única a ter alcançado tal posto. Como se não bastasse, Sara ainda era negra, o que, para todos os países, dispensa maiores comentários. Parece transgressão demais para uma única pessoa? Pois então passemos ao filme.
De cierta manera opera nos níveis documental e ficcional, alternando e contaminando características de um e de outro gêneros. As transições entre ambos são a principal estratégia anti-ilusionista desta obra – característica bastante corriqueira de um certo tipo de cinema contra-hegemônico da época.
Logo no início Sara apresenta ao espectador uma cartela sobreposta à imagem na qual informa: “película de largometraje sobre algunos personajes reales y otros de ficción”. O que fornece subsídios para a criação de sequências maravilhosas, como a que o casal protagonista, durante uma briga na rua, encontra um amigo do rapaz. Após apresentá-lo para a moça, a narrativa é interrompida por uma pergunta sobre fundo branco: “¿ Quién es Guillermo?”. Tem início uma mini-reportagem sobre quem é, na verdade, aquele “ator”.
No campo temático, De cierta manera toca em alguns dos temas mais complicados para a Revolução naquele momento e hoje: o marginalismo e o machismo. Em relação ao primeiro, é muito claro o discurso das esquerdas daquele tempo – o qual foi solapado pelo papel protagônico que o “lumpenproletariado” assumiu nos últimos anos em nossa região.
Já no que diz respeito ao segundo, o conforto em relação aquilo que está sendo postulado pelo filme é muito maior. Voltando às origens da ilha para descobrir, tanto na cultura dos escravos como na dos espanhóis, os fatores que contribuíram para uma exclusão da mulher que em certa medida ainda perdura(va), se procura explicar tamanha falha dentro de um contexto revolucionário. Esta tarefa, séria, revestida de um caráter quase sociológico, cabe ao documentário.
Para a ficção compete demonstrar como o machismo se manifesta nas relações cotidianas e suas conseqüências, tanto no nível individual como no coletivo. Mario fornece no desenvolver da história alguns bons exemplos através de seu comportamento por vezes grosseiro e quase truculento. Yolanda, que não tem nenhuma tolerância a tais rompantes, praticamente ensina às espectadoras o que fazes nestes casos.
O curioso é que ela própria não é capaz de reconhecer este tipo de relação em uma escala maior. Professora e oriunda de uma família, segundo suas palavras, “con recursos”, é totalmente insensível ao fenômeno das mães solteiras, das chefes de família e da jornada dupla das mulheres. O que faz com que ela emita julgamentos implacáveis sobre/para a mãe dos alunos.
Ou seja, Sara Gómez além de tudo ainda era uma cineasta feminista. Crítica o suficiente para personificar (também) em uma mulher o machismo. De cierta manera não traz, portanto, aquelas análises rasas onde todo mundo do sexo feminino é mocinho (ou melhor, mocinha) e todo mundo do sexo masculino é vilão.
Sua lucidez também foi grande o suficiente para reconhecer que os fenômenos dos quais estava tratando estavam por demais arraigados para que pudesse haver um final feliz, embora interpreto que seja possível sair da experiência da exibição com ele apontado no horizonte. Afinal, como os 14 documentários que realizou, Sara dirige esta que foi sua última obra em prol de uma causa – na qual parece que acreditava muito.

Tuesday, April 14, 2009

Di buen día a papá


Quem manda atrasar o texto? O Evo Morales já encerrou sua greve de fome.

Di buen día a papá (Argentina/Bolívia/Cuba, 2005), filme dirigido por Fernando Vargas, não apresenta uma história, e sim uma rede de histórias. E, muito mais que o fato de todas elas se passarem em La Higuera, Bolívia, o que realmente as une é a relação que cada uma desenvolve com a figura de Ernesto Che Guevara, morto em tal localidade em 1967.
A fim de caçar o guerrilheiro, diversos militares do exército boliviano são deslocados para a região. A jovem Eva conhece e se apaixona por um deles. Este, porém, não cumpre sua promessa de casamento e vai embora assim que a missão é dada por encerrada, deixando a moça grávida de uma filha do vento.
Dez anos depois, no dia dos mortos de 1977, as famílias que têm algum vínculo com os militares que participaram do assassinato do argentino recebem uma carta alertando sobre a maldição do Che. Para escapar dela, a solução seria rezar por sua alma. Mamina, mãe de Eva, não dá importância ao alerta, até porque tem verdadeiro ódio do pai da menina Ángeles, não se importando com o que aconteça com ele.
Ocorre que quem some é sua neta, a qual só volta para casa depois que a matriarca não apenas ora por ele, mas também lhe oferece comida – reza a lenda no povoado que Che foi capturado porque estava caminhando faminto atrás de algo para comer. A partir de então, a casa inteira vira devota do santo milagroso.
Após outro salto de uma década acompanha-se a chegada de um ônibus de estrangeiros à cidade. Seu objetivo é organizar uma homenagem ao Comandante por conta do aniversário de sua morte. É interessante observar que boa parte deles já conta com alguma peça em seu vestuário que estampe a famosa imagem de Korda manipulada pelo artista plástico Jim Fitzpatrick.
Sucessivos desentendimentos marcam a breve passagem do grupo por La Higuera. Com exceção do prefeito, há conflitos com os militares do local, com jovens nacionalistas e com o noivo de Ángeles – que, diga-se de passagem, vai embora com eles quando deixam a região.
Por fim, chega-se a 1997. Por ordem do governo federal começa uma nova caçada a Che Guevara; na verdade, dessa vez o que está sendo procurado são seus ossos. Instaura-se um impasse: a instância máxima de decisão do país deliberou devolver os restos para a família, mas a população está disposta a fazer de tudo para que estes permaneçam em seu território. Assim, mudam as sinalizações de lugar, fornecem pistas erradas, tudo para que o santo guerrilheiro continue lá.
Não é difícil perceber que Di buen día a papá é uma espécie de Personal Che da ficção – e realizado antes deste, é claro. Ainda que aquele não viaje para distintos lugares distantes entre si, também ficam muito claras algumas das diferentes apropriações que são feitas da história e da imagem de uma das mais famosas personalidades do século XX: o santo de Mamina e Eva, o herói dos jovens estrangeiros, o inimigo do país para militares e nacionalistas, a possibilidade de ascensão econômica através do turismo, vislumbrada pelos políticos...
Além disso, impressiona a simplicidade do universo que está sendo retratado, e é muito difícil não ser contagiado pelo olhar extremamente afetuoso que o diretor lança para os seus personagens, em especial para os habitantes de La Higuera. E cabe ressaltar que, apesar de não ser o foco principal nem da narrativa nem desta análise, algumas críticas bastante contundentes são tecidas sobre a Bolívia, quando, por exemplo, um militar lembra que o mesmo Exército que enterrou Che agora está desenterrando-o.
A única coisa que compromete – e muito – Di buen día a papá é a caracterização da passagem do tempo nas pessoas. Sucedem-se três décadas e pelo menos os adultos estão exatamente iguais ao que sempre estiveram. Uma pena, porque não só demonstra falta de cuidado na produção, mas também complica o entendimento das histórias.