Sunday, October 5, 2008

Guantanamera



No dia do Espetáculo Democrático, um filme sobre o país que mais desperta polêmicas neste (e em outros) quesito(s)...

Ah, a formatação deste blog está muito louca por mudanças que o blogspot fez por vontade própria!

Guantanamera foi a última parceria (sempre bem-sucedida) dos diretores Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabío, em decorrência do falecimento do primeiro. Ironicamente, é a morte (da tia Yoyita, de outros cubanos e, quem sabe, do próprio país) que desencadeia e perpassa toda a narrativa. Mas deixemos de lado as previsões a posteriori...
A famosa cantora filha de Guantanamo retorna já bastante idosa a sua terra natal e reencontra o grande amor de sua vida, que havia deixado para trás. Ela e o simpático músico local não conseguem disfarçar a emoção que sentem durante, e fogem da festa que estava sendo celebrada em homenagem à carreira bem-sucedida para recordar os velhos tempos. É demais para uma senhora com a idade tão avançada, e o resultado é seu falecimento.
Ao mesmo tempo Adolfo, marido da sobrinha da morta, tenta colocar em prática seu plano brilhante para resolver o problema de translado dos defuntos no país e vê chegada a sua grande oportunidade. Assim ele, a esposa e o “viúvo” farão, em companhia de um motorista trambiqueiro e boa praça, uma cruzada por todo território nacional até Havana.
Realizado em um período muito crítico da história cubana, serve de termômetro do momento de desencanto que se vivia na ilha então. As críticas e contradições estão na tela, nuas e cruas (mas nunca estetizadas).
Para começo de conversa, os defuntos não são os únicos a sofrer com a falta de transporte. O povo tem que se submeter – algumas vezes pagando – a caronas nas boléias dos caminhões, a venda de passagens rodoviárias pode ser repentinamente cancelada e um casal precisa literalmente se jogar na frente de um carro para que seja levado a um hospital a fim de que a mulher dê a luz (e é claro que o automóvel em questão é justamente um integrante do comboio funerário).
O mercado negro, característico da escassez conhecida durante o período especial – os anos subseqüentes à queda da União Soviética, se faz presente todo o tempo. Tony (teria sido esta mais uma escolha irônica?), o condutor, contrabandeia alho, banana e até animais vivos para a capital. Não se consegue comprar nada nas estradas sem dólares, mesmo eles sendo proibidos, e vê-se inclusive uma taberna ilegal, “mas muito decente”, onde ele, Gina e Cândido, já cansados de Adolfo, escapam para fazer uma refeição.
O apagão, outro conhecido íntimo dos cubanos nos anos 1990 também é explorado, ainda que de maneira bem mais sutil que os elementos já citados. E a burocracia que Alea critica desde A Morte de um Burocrata aparece mais uma vez como a grande vilã pelos inúmeros problemas do país. Apesar de todos os deslizes dos demais personagens (já que nenhum deles é unidimensional), Adolfo é o único com o qual em momento algum o público consegue se identificar. É, ainda, o único a ser repreendido pela canção que desempenha o papel de narrador.
No entanto, a passagem do filme na qual parece ficar mais clara a posição de seus diretores é a ontológica seqüência do dilúvio na qual se conta a história do fim da imortalidade na Terra. É preciso que os velhos morram, a velha burocracia seja superada, os jovens tenham mais poder e a humanidade se desengesse e volte a caminhar, a estar em movimento.
Tudo isso com uma linguagem que foge dos padrões do cinema político e que consegue envolver e cativar o espectador sem deixar de convidá-lo a refletir o que está vendo/ouvindo. Há uma história de amor arrebatadora, há a trilha sonora contando a história, há clichês de gênero, há diálogos muito bemescritos e muita ironia bem construída (inclusive destinada a própria maneira como os realizadores constroem a narrativa, como, por exemplo, quando Ramón brinca com Mariano afirmando que sua história com Gina parece coisa de novela).
Ao contrário de muitas coisas que li, acredito que esta não é uma obra anti-socialista, anti-castrista e a favor do projeto estadunidense para o futuro da ilha. Muito pelo contrário, é uma crítica contundente, mas feita de dentro, por alguém que dedicou boa parte de seu tempo e sensibilidade para contribuir com o aperfeiçoamento de um projeto que agora vê em crise. E que ainda consegue vislumbrar caminhos felizes apesar de tudo.
PS: Para os que pensam que Cuba é uma ditadura, fica a questão: como o ICAIC financiou este filme?

Sunday, September 21, 2008

American Visa



Depois de semanas de tensão ocasionada pela direita golpista, o país escolhido não poderia ser outro.

American Visa (México/Bolívia, 2005) é o segundo longa-metragem do diretor Juan Carlos Valdivia. A produção conta a história de Mario, professor de inglês em Potosí obstinado a emigrar para os Estados Unidos, e Blanca, uma prostituta de Beni. Os conhecidos atores mexicanos Kate del Castillo e Demián Bichir interpretam os papéis principais. O encontro de ambos e o desenlace de suas histórias acontecem em La Paz, onde esta trabalha e aquele se encontra para tirar o visto.
A pergunta lançada pela propaganda do filme, algo como “Por que todos pensam que a Gringolândia é a solução dos seus problemas?”, reiterada muitas vezes pela bela protagonista, na verdade não é desenvolvida na trama. O máximo que acontece nesse sentido é Mario descobrir que o responsável pela imigração estava envolvido diretamente no esquema ilegal de compra de carimbos para os passaportes.
As interrogações que estão presentes o tempo todo são “Que preço vale à pena pagar quando se tem um objetivo?” e “Por que algumas pessoas acham que no exterior – e em especial nos EUA – a vida sempre é melhor?”. É em relação a estas que as personagens se questionam, refletem e agem, ele se detendo mais na primeira e ela na segunda, embora no final a obra exija de ambos respostas para as duas.
Infelizmente há alguns elementos extremamente atuais que deixam de ser trabalhados logo nos primeiros minutos, os quais poderiam contribuir para amenizar o tom de drama romântico que predomina na narrativa. Logo em sua chegada a La Paz, Mario toma um táxi e, ao ver seu percurso interrompido por uma apresentação folclórica na rua, comenta com o motorista que o problema desta parte do país era a falta de compromisso de seus habitantes. Furioso, este exija que seu passageiro desça imediatamente.
Há também um debate no interior do hotel entre Mario, Blanca, seu Antonio e um outro hóspede no qual a prostituta defende seu país, do qual afirma não sair de maneira alguma, e a necessidade de se lutar para torná-lo melhor. O sumiço desse tipo de provocação para Mario acaba debilitando não apenas seu personagem, mas a própria película, que deixa de problematizar o que é o sonho de fazer a América na sociedade boliviana.
Os Estados Unidos têm uma presença ostensiva sim, contudo ela é muito óbvia e direta, principalmente no discurso de Mario e em elementos da Direção de Arte. A boate na qual Blanca trabalha, por exemplo, tem por todos os lugares as bandeiras deste país, e em determinado momento um transeunte passa ao lado de Mario, ocupando boa parte do quadro, com uma camisa que também reproduz o mesmo símbolo nacional.
Esta falta de sutileza e mesmo de criatividade na elaboração simbólica dos emblemas estadunidenses contrastam com uma visão mais complexa da relação de fascínio e ódio que os bolivianos em particular e os latino-americanos em geral estabelecem com tal nação.
A edição do filme também incomoda. Em algumas seqüências o ritmo acelerava exageradamente, gerando ruído e dispersão em seqüências centrais da história, ou em outras nas quais nada justificava a mudança da montagem. Ademais, a trilha sonora, bastante presente, está ali para acentuar o clima transmitido pela trama e pelas imagens, nada mais.
Ao final da exibição, a impressão que fica é de desperdício de uma excelente premissa dramática. Valdivia declarou para o jornal El Nuevo Día que sua nova produção era “entretenida ‘como debe ser el cine’. Talvez seja esta concepção equivocada de certo papel que o audiovisual obrigatoriamente tenha que cumprir a principal causa de American Visa ser muito mais uma história de amor que “también reflexiva y política en el sentido de que deja entrever el ‘desencanto’ de la ciudadanía por ese aspecto, la política boliviana”, como o diretor tanto almeja.

Deus e o Diabo na Terra do Sol



Este texto é do dia 7 de setembro, que o blogger só me deixou portar agora...

Muitas vezes se fala de cinema latino-americano como se o Brasil não participasse de tal recorte – o que, aliás, não é uma exclusividade dessa área. Na maioria das vezes o país está mesmo de costas para seus vizinhos mais próximos, lembrando dos mesmos apenas quando há a ameaça da atuação de algum deles afetar diretamente seus interesses geopolíticos.
Para não reforçar o erro que se está criticando, o filme do texto de hoje é brasileiríssimo/latiníssimo. Um dos grandes ícones do cinema da região, possuidor de algumas seqüências conhecidas por cinéfilos do mundo inteiro: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964).
Como fazer análises sobre a referida obra é um exercício que vem sendo repetido desde o seu lançamento, e na verdade há muito pouco de novo a se dizer sobre ela a partir deste viés, resolvi apontar quais são, em minha opinião, os momentos que a tornam antológica, e os porquês.
Citaria, primeiramente, a seqüência na qual o ex-vaqueiro agora beato Manuel carrega uma pesada pedra morro acima, tendo por objetivo conseguir chegar com ela até o interior da igreja e assim provar a sua fé. Sem dúvidas há diversas elipses na montagem, mas esta, aliada à duração dos planos, à atuação de Geraldo Del Rey e à repetição da mesma ação dão ao espectador a sensação de tempo real.
Um tempo real angustiante, penoso, de sacrifício, como é o tempo das penitências. E suportar esta sucessão de planos não deixa de ser algo semelhante para aqueles que se dispõe a acompanhá-la. Mescla de imolação e gozo, nosso e do protagonista com o qual estamos identificados.
Pouco tempo depois, surge na tela o segundo trecho que avalio merecer tamanho destaque: o sacrifício do inocente para lavar a alma do condenado. Rosa, a mulher de Manuel, não faz nenhuma questão de esconder sua descrença em Sebastião, que, ao invés de castigá-la, se propõe a salvá-la através da purificação com o sangue de uma criança.
Assim, se encontram à frente de um altar/palco o santo, o casal e o ser do qual se tirará a vida. A tensão é crescente, embora se suspeite não se sabe exatamente o que Sebastião, que agora maneja um punhal benzido, fará. Infelizmente, o enquadramento, a escala de plano e o ângulo de filmagem prejudicam esta seqüência em um de seus momentos principais. Mas em seguida o filme se recupera, já que Antônio das Mortes chega ao Monte Santo e mata todos os fiéis que ali estão. Ele poupa apenas Manuel e Rosa, os quais encontra acuados ainda dentro da igreja. Nesse instante todos os elementos que não foram combinados de modo tão feliz na hora da morte da criança estão impecáveis, e o vigor e força de Deus e o Diabo conhecem aqui uma de suas mais fortes materializações.
Se as duas primeiras envolvem o universo messiânico, as outras duas selecionadas se passam na fase cangaço de Manuel e Rosa. É lugar comum elogiar a atuação de Othon Bastos como Corisco. Ainda assim é impossível não mencioná-la, em especial quando, com apenas seu corpo (ou partes dele) em quadro, refaz a última conversa que teve com Lampião. Os movimentos de câmera são, contudo, tão importantes para o êxito desta parte da obra como a própria performance do ator.
Assim como quando o novo bando de Corisco aparece para se vingar no casamento do filho de um homem que o havia humilhado. Talvez seja o momento no qual os atores em seu conjunto (já que individualmente há outros de destaque) mostram maior expressividade dramática, mas os planos apenas funcionam porque a montagem alterna entre gerais e de conjunto, dando a oportunidade do espectador entrar no transe através de seus múltiplos focos.
Definitivamente, falar de Deus e o Diabo é clichê, mas sempre muito prazeroso!

Sunday, September 7, 2008

Deus e o Diabo na Terra do Sol

Muitas vezes se fala de cinema latino-americano como se o Brasil não participasse de tal recorte – o que, aliás, não é uma exclusividade dessa área. Na maioria das vezes o país está mesmo de costas para seus vizinhos mais próximos, lembrando dos mesmos apenas quando há a ameaça da atuação de algum deles afetar diretamente seus interesses geopolíticos.

Para não reforçar o erro que se está criticando, o filme do texto de hoje é brasileiríssimo/latiníssimo. Um dos grandes ícones do cinema da região, possuidor de algumas seqüências conhecidas por cinéfilos do mundo inteiro: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964).

Como fazer análises sobre a referida obra é um exercício que vem sendo repetido desde o seu lançamento, e na verdade há muito pouco de novo a se dizer sobre ela a partir deste viés, resolvi apontar quais são, em minha opinião, os momentos que a tornam antológica, e os porquês.

Citaria, primeiramente, a seqüência na qual o ex-vaqueiro agora beato Manuel carrega uma pesada pedra morro acima, tendo por objetivo conseguir chegar com ela até o interior da igreja e assim provar a sua fé. Sem dúvidas há diversas elipses na montagem, mas esta, aliada à duração dos planos, à atuação de Geraldo Del Rey e à repetição da mesma ação dão ao espectador a sensação de tempo real.

Um tempo real angustiante, penoso, de sacrifício, como é o tempo das penitências. E suportar esta sucessão de planos não deixa de ser algo semelhante para aqueles que se dispõe a acompanhá-la. Mescla de imolação e gozo, nosso e do protagonista com o qual estamos identificados.

Pouco tempo depois, surge na tela o segundo trecho que avalio merecer tamanho destaque: o sacrifício do inocente para lavar a alma do condenado. Rosa, a mulher de Manuel, não faz nenhuma questão de esconder sua descrença em Sebastião, que, ao invés de castigá-la, se propõe a salvá-la através da purificação com o sangue de uma criança.

Assim, se encontram à frente de um altar/palco o santo, o casal e o ser do qual se tirará a vida. A tensão é crescente, embora se suspeite não se sabe exatamente o que Sebastião, que agora maneja um punhal benzido, fará. Infelizmente, o enquadramento, a escala de plano e o ângulo de filmagem prejudicam esta seqüência em um de seus momentos principais. Mas em seguida o filme se recupera, já que Antônio das Mortes chega ao Monte Santo e mata todos os fiéis que ali estão. Ele poupa apenas Manuel e Rosa, os quais encontra acuados ainda dentro da igreja. Nesse instante todos os elementos que não foram combinados de modo tão feliz na hora da morte da criança estão impecáveis, e o vigor e força de Deus e o Diabo conhecem aqui uma de suas mais fortes materializações.

Se as duas primeiras envolvem o universo messiânico, as outras duas selecionadas se passam na fase cangaço de Manuel e Rosa. É lugar comum elogiar a atuação de Othon Bastos como Corisco. Ainda assim é impossível não mencioná-la, em especial quando, com apenas seu corpo (ou partes dele) em quadro, refaz a última conversa que teve com Lampião. Os movimentos de câmera são, contudo, tão importantes para o êxito desta parte da obra como a própria performance do ator.

Assim como quando o novo bando de Corisco aparece para se vingar no casamento do filho de um homem que o havia humilhado. Talvez seja o momento no qual os atores em seu conjunto (já que individualmente há outros de destaque) mostram maior expressividade dramática, mas os planos apenas funcionam porque a montagem alterna entre gerais e de conjunto, dando a oportunidade do espectador entrar no transe através de seus múltiplos focos.

Definitivamente, falar de Deus e o Diabo é um clichê. Mas sempre muito prazeroso!



Sunday, August 24, 2008

Luz Silenciosa

Uma homenagem às vítimas da onde de violência no México no começo deste mês.

Está em cartaz em algumas salas do país Luz Silenciosa (México/Holanda/ Alemanha/França, 2007), terceiro longa-metragem do polêmico diretor Carlos Reygadas. Habitualmente seus filmes despertam reações de amor e ódio na crítica e no público, e nada nessa produção parece sinalizar uma recepção diferente.

Não me arriscaria a dizer que o filme é a história de um homem menonita de meia-idade que se apaixona por uma outra mulher da pequena e fechada comunidade onde vive – que se converte em sua amante – e acaba matando a esposa de desgosto. Apesar de, de fato, esta trama estar presente durante toda a obra, não parece que ela seja o elemento principal da mesma.

Tão importante quanto as ações são os lugares e tempos de seu desenrolar, e como já fica explícito em seu título, a luz que ilumina – ou não – todos eles. Não por acaso o realizador abre e encerra seu filme com deslumbrantes nascer e pôr do sol (respectivamente), e um estupendo céu de estrelas.

Essa equiparação entre narrativa e fruição estética do espectador (também alcançada através de enquadramentos que privilegiam a beleza de pessoas, da natureza e de suas interações) certamente faz com que a obra se afaste muito das regras do cinema clássico-narrativo às quais todos estão tão acostumados. O que ajuda a explicar os bizarros comentários que ouvi no banheiro feminino após a sessão.

“Filme de intelectual”, “personagens chatos”, “sonolento” e “sem história” foram alguns dos juízos mais recorrentes neste encontro informal de críticos em local tão inusitado. Às vezes assusta o quanto o público de cinema está pouco aberto a experimentações e outras propostas para as grandes telas...

Contribui também para o incômodo que Luz Silenciosa pode causar a escassez como elemento presente em todos os momentos da narrativa. A disciplina e a rigidez de uma realidade orientada por costumes religiosos estabelecidos há muitos anos se faz presente nas poucas falas, nos poucos acontecimentos, na contenção das emoções, etc.

Mesmo o sexo entre o casal que se ama não corresponde à explosão de sentimentos característica desse tipo de momento no cinema. Sequer segue o que se poderia chamar de um “padrão Reygadas” de retratá-lo (em Japón e Batalha no Céu algumas cenas que foram bastante criticadas por sua crueza e por explorarem os corpos dos atores de modo muito próximo ao do sexo explícito), o que foi uma decisão muito acertada do diretor.

A continuidade de certas marcas autorais é quase inevitável na medida em que o realizador vai construindo suas diferentes obras. E na verdade não são estas pequenas repetições que fazem com que se possa identificar os vestígios de um grande diretor. O que eleva este cineasta mexicano à constelação dos principais nomes da contemporaneidade é a sua maneira audaz de lidar com alguns dos cânones da sétima arte, goste-se das soluções encontradas por ele ou não.

Eu, por exemplo, ainda não consegui decidir se me agrada que a morta ressuscite após o sincero arrependimento de seu marido e da amante. Claro, existe uma doença que causa falecimento aparente, e poderia ter sido esse o caso. Mas que, pelo menos à primeira vista, parece com algo que aconteceria em um filme de Hollywood (e que eu execraria) é indiscutível.

Não deixa de ser mais uma provocação interessante de Reygadas, tenha sido esta sua intenção ou não. Luz Silenciosa, especificamente, e seus filmes em geral, não estão planejados para o gosto do grande público. E no final, ao se valer de um recurso caro ao que este está acostumado, acaba também se afastando daquele que seria o “seu” público (mais “intelectual”, que gosta de filme “sem história” e “personagens chatos”.).

De qualquer maneira, é uma obra que merece ser vista. Uma pena que, sendo como é feita a distribuição e exibição em nosso país, poucos terão tal oportunidade.

Monday, August 11, 2008

¿Quién mató a la llamita blanca?

No dia 11 de agosto, o país não poderia ser outro...

¿Quién mató a la llamita blanca? é o segundo filme do diretor Rodrigo Bellot. Sua obra de estréia, Dependencia Sexual (2003), foi muito bem recebida pela crítica. Já aquela, embora tenha sido um imenso sucesso de público tanto nas salas de cinema quanto nas mãos dos ambulantes, foi muito menos unânime nas avaliações dos especialistas.

É um longa-metragem ficcional bastante audacioso, em sua concepção e realização. Enquanto projeto, é mais que uma tentativa de contribuir para a construção de uma indústria cinematográfica boliviana sustentável (o que já é uma tarefa hercúlea). É também a pretensão de usar os formatos e parâmetros visuais e perceptivos que a população consome diariamente para abordar as questões específicas do país.

No texto de apresentação encontrado na página do filme lê-se: “Contamos nuestras historias, con un estilo de narración que estamos acostumbrados a consumir, sólo que ahora, nuestro proceso se lleva a la inversa, nosotros – los bolivianos – somos los productores, los dueños de la historia y del mensaje, y ahora contamos nuestra realidad, para mostrársela al mundo.” (SITE OFICIAL DO FILME)

Para cumprir tal meta, a equipe utiliza uma infinidade de recursos que povoam as imagens hegemônicas: animação, efeitos especiais, tela dividida, letreiros e setas, fotos fixas... Tudo isso carnavalizado, re-apropriado, para falar de “el racismo crónico disfrazado de regionalismo, el clasismo, la intolerancia y la corrupción socialmente aceptada” (Idem).

Seus dois (anti)heróis, os criminosos Jacinto e Domitila, são habitantes de El Alto, cidade vizinha de La Paz, composta majoritariamente por indígenas e camponeses migrantes das regiões rurais do país, e mais recentemente, na década de 80, por diversas questões econômicas , de cocaleros oriundos de Cochabamba e mineiros de Potosí.

Ao longo de sua trajetória pela Bolívia (Jacinto e Domitila – os tortolitos são pagos para levar cocaína até o Brasil, tendo, portanto, que atravessar quase todo o seu país) passam por algumas de suas principais cidades, como Oruro, Potosí, Cochabamba, Santa Cruz, além de La Paz e El Alto, seu ponto de partida. Ficam explícitos os conflitos território-culturais e suas implicações, tais como preconceitos e visões diferentes de gestão para o país.

Jacinto e Domitila usam para praticar seus crimes um traje que mistura elementos ‘andinos’ com ‘ocidentais’ – como afirma Domitila, uma roupa como a dos Power Rangers. Além disso, para se divertir vão a um bar no qual toca uma banda de rock e há uma grande tolerância às drogas ilícitas. Ou seja, não são “índios agarrados a sua cultura secular”, e sim habitantes de uma grande cidade em um país periférico, que carregam consigo, junto às tradições, influencias oriundas de outras partes do mundo.

No caso de seus antagonistas, os policiais Chicho e Perucho, a situação é ainda mais complexa. Perucho é nascido na região ocidental da Bolívia, portanto colla como os tortolitos. Todavia, depois de anos de trabalho dentro das forças repressivas do Estado, adotou o pensamento de que os collas são bandidos, baderneiros, bloqueadores de estrada, o que fragilizou bastante seu pertencimento a esta categoria.

Já Chicho, responsável por emitir alguns dos comentários mais preconceituosos do filme, é filho de uma boliviana com um estrangeiro que não o assumiu. Assim mesmo se considera um camba (das terras baixas, região mais rica do país) alemão, pois, segundo ele, “os cambas nascem onde querem”.

Embora não aponte propostas explícitas para a resolução dos conflitos território-culturais enfrentados pela/na sociedade boliviana e materializados nos quatro personagens principais (seria possível ler a insinuação de uma aliança de classe como solução, mas, de fato, ¿Quién mató a la llamita blanca? é um filme muito mais provocativo que propositivo), a posição da obra é a de que superá-los é possível. E é este o tom que do poema de Eduardo Galeano escolhido para encerrar a narrativa.

“Nuestros países nacieron condenados/a una suerte de fatalidad del miedo de ser/que nos impide de vernos como somos/y como podemos ser...
Pero, ese miedo NO es invencible/el racismo NO es una fatalidad del destino/NO estamos condenados a repetir la historia.”

(reflexões desenvolvidas junto com Cadu Marconi)

Monday, July 28, 2008

Morango e Chocolate

"Siempre es 26, siempre es 26. Para nosotros siempre es 26."

“Morango e Chocolate” (Cuba, 1994) é um filme realizado por dois dos grandes diretores da história do cinema da ilha: Juan Carlos Tabío e Tomas Gutiérrez Alea, sendo o penúltimo trabalho deste antes de sua morte. Com atuações primorosas de Jorge Perugorría, Mirta Ibarra e Vladimir Cruz, o longa-metragem narra a vida de três personagens (Diego, Nancy e David, respectivamente), a partir do momento em que suas trajetórias se cruzam.

Primeira obra do país a ser indicada para o Oscar de melhor filme estrangeiro (uma grande injustiça, considerando os grandes clássicos que já foram produzidos naquele território), traz de maneira por vezes divertida, por vezes trágica, mas sempre muito sensível, questões bastante delicadas da Revolução Cubana para o foco das atenções.

Esta postura não é singular na carreira de ambos. Tabío, por exemplo, foi o realizador do hilário “Se Permuta” (1984), no qual uma mãe enrola metade da população local para conseguir uma bela casa para sua filha morar depois de casada. E Alea já em 1966 dirige a comédia “A morte de um burocrata”, criticando alguns perigos que ele vislumbrava no processo que vivia a sociedade de então (cabe ressaltar que todos estes filmes mencionados, além do aqui analisado, foram patrocinados pelo estatal Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica).

O tema da vez é a homossexualidade e a liberdade de expressão. Diego é um professor universitário que tem problemas com as mais diversas instituições do regime e seus representantes (na figura de vizinhos, superiores ou mesmo de jovens da Liga Comunista como David) principalmente por sua orientação sexual, mas também por discordar das diretrizes que norteiam a produção cultural do país. Ao ver este último tomando um sorvete, aposta com seu amigo Germán que é capaz de levá-lo para a cama, e por isso se aproxima dele.

A princípio, o estudante e militante comunista fica muito irritado com o assédio, mas acaba concordando em ir até a casa do estranho, atraído por supostas fotos que ele havia feito de sua peça (e, claro, por uma considerável dose de curiosidade). O encontro marca o começo de uma grande amizade, além de um profundo processo de aprendizagem para David, que vê algumas de suas grandes certezas e preconceitos serem paulatinamente abalados. A vizinha e amiga de Diego – e suicida – Nancy completa o trio dos personagens principais, cabendo a ela a realização de amorosa da história (diretamente no caso do jovem, que jamais havia tido relações sexuais, e indiretamente no de Diego, que se afeiçoa tanto pelo rapaz que quer vê-lo feliz ainda que em dentro do padrão heterossexual).

Um dos pontos fortes do filme é não ceder a construções rasteiras de espécie alguma. Nenhum dos personagens está totalmente certo ou errado. Há razão nas falas do intelectual gay sobre as perseguições que tem que enfrentar diariamente, mas também são plausíveis as análises do defensor da Revolução sobre seus erros e os métodos ilegais de Nancy de ganhar a vida, assim como a culpa que ela sente por isso. No que diz respeito ao desenvolvimento dos personagens, há coerência nos avanços e retrocessos das posturas de David. Ainda bem, isso evita que ele da noite para o dia se converta em um chato mocinho e o filme em uma óbvia lição de moral. A disputa dos amigos pelo jovem (que inclui algumas mentirinhas e mesmo uma batalha religiosa) também auxilia a construção de pessoas multidimensionais em uma sociedade complexa.

O outro grande acerto é o modo como as marcas da época são trabalhadas no universo ficcional e paisagístico. As limitações impostas pelo período especial (1992-2000) se encontram materializadas tanto nos pequenos contrabandos de Nancy quanto na bela seqüência em que vemos uma construção destruída enquanto Diego fala da cidade. Esta é, aliás, uma síntese exemplar do acertado caminho trilhado pelos diretores para desenvolver essa rara película.

Sunday, July 13, 2008

Me Gustan los Estudiantes


Em homenagem ao Eduardo Galeano e as suas excelentes declarações sobre integração regional.

Mario Handler é um dos grandes nomes do cinema uruguaio. Se tornou famoso tanto por sua atuação na Cinemateca del Tercer Mundo, um dos poucos lugares na América Latina onde se podia exibir filmes políticos/militantes com mais liberdade durante os anos 60 e 70, como também por sua intensa produção cinematográfica.
“Me gustan los estudiantes”, um curta-metragem em preto-e-branco de seis minutos, é seu sétimo filme e recebeu o prêmio de Melhor Filme Nacional no ano de sua realização (1968). Talvez de todas as suas obras com claro objetivo de intervenção política na realidade esta seja a mais famosa.
E não por acaso. Assim como Now! (1964), do realizador cubano Santiago Álvares, a banda sonora é uma música bastante conhecida – no caso a canção homônima ao filme composta por Violeta Parra – sobreposta a uma série de imagens bastante fortes.
No entanto, se este elegeu fotos fixas de situações de preconceito racial nos Estados Unidos como sua matéria-prima, aquele usou o material ainda “quente” dos protestos que ocorreram em seu país durante a realização da Conferência dos Chefes de Estado em Punta del Este (especialmente o confronto entre estudantes e policiais).
A provocação começa já com os lindos créditos iniciais, cuja dureza e despojamento dos nomes e funções escritos diretamente sobre a película contrastam com o doce e machista cartaz de apoio ao evento, o primeiro plano da película. Eles também questionam a tranqüilidade transmita pelas imagens da chegada dos principais líderes em seus aviões, assim como o faz as primeiras estrofes da música (¡Que vivan los estudiantes/ jardín de las alegrías!/ Son aves que no se asustan/ de animal ni policía/ y no le asustan las balas/ ni el ladrar de la jauría. Caramba y zamba la cosa/ que viva la astronomía!).
Em seguida, inicia-se uma montagem alternada entre os presidentes em suas protegidas reuniões e a turbulência nos espaços abertos da cidade. A edição de som é muito interessante, já que pontua alguns momentos – em geral os que aparecem manifestantes e polícia – sem se fazer presente todo o tempo, o que seria de se esperar de um filme com uma linguagem de certa maneira próxima ao videoclip.
No âmbito dos protestos, são mostrados os preparativos de uns e outros: os estudantes abrem e penduram suas faixas; os agentes do Estado verificam seus esquemas de segurança. A partir do momento em que os embates vão se tornando cada vez mais duros (ou seja, vão ocorrendo mais “interações”), a montagem segue alternada, mas passando a variar entre ação e reação dos dois grupos da rua, praticamente abandonando os presidentes.
A música deixa de ter intervalos. E mais, passa a se relacionar de maneira mais clara com o plano das imagens. Em diversos momentos, como quando ela se refere a pedras, punhos cerrados e tiranos, há uma associação que pode ser classificada como direta. No caso desses últimos, vê-se a utilização do humor, já que é um dos poucos momentos em que retorna a conferência dos presidentes.
Seu final, que alia um momento de ápice da música, tanto em sua melodia como em conteúdo, com planos dos jovens jogando pedras nas forças repressivas – as quais que se vêem obrigadas a recuar, é extremamente pertinente a um filme com claras pretensões de agitação social, como este é.
Cabe ainda pontuar o domínio da técnica de montagem demonstrada e a elaboração fotográfica. Claro que há seqüências nas quais a imagem é bastante tremida, pela câmera estar na mão de um cinegrafista que precisa correr para sua própria proteção. Contudo, sempre que possível – e em especial nos planos em que há alguma fonte emissora de fumaça (bombas, barricadas) – o que se vê são imagens muito bem compostas, ontológicas dentro de seu gênero.

Sunday, June 29, 2008

Los rubios

Em homenagem ao confronto governo X grandes plantadores de soja, na esperança de que ambos percam...

“Eu me chamo Analía Couceyro e nesse filme faço o papel de Albetina Carri.”
Uma frase como esta dentro de um filme, e não em uma entrevista dos extras de um DVD, já causa estranhamento. A situação ainda fica mais inusitada quando se tem conhecimento de que a referida Albertina Carri é a roteirista e diretora da obra, no caso, um documentário.
Assim é Los rubios (Argentina, 2003), uma não-ficção (?) autobiográfica sobre tema difícil de definir, que seria aproximadamente, mas não só, a busca e reconstrução da protagonista pela memória de seus pais, assassinados durante a última ditadura militar do país.
Em um primeiro momento pensei que, tendo alguém para interpretar Albertina, esta não apareceria diante das câmeras. Quem sabe a razão para tal escolha não pudesse ser uma forte timidez? Contudo, o que ocorre na medida em que o longa avança é algo diferente. A proposta é efetuar no plano fílmico uma divisão absolutamente inexeqüível na “vida real”, a saber, a fragmentação desta mulher em duas. Caberia, portanto, à atriz interpretar sua dimensão filha condutora/construtora da história, ficando a “verdadeira” com sua parte realizadora de cinema.
Se as razões para esta opção não são nunca explicadas ao espectador, algumas pistas, no entanto, são fornecidas. Em mais de um momento comenta-se entre a equipe (que é personagem, na medida em que o próprio processo de realização fílmica também o é) o quanto foi positivo não ser Albertina quem estava encarregada das entrevistas. O papel desta nas gravações é dirigir da melhor maneira possível as cenas, e não emocionar-se.
Esta postura, que se sustenta na maior parte da obra, consegue produzir seqüências incríveis. Em uma delas Albertina dirige sua atriz, que tem que contar em entrevista, olhando para a câmera, o quanto ela odeia velas de aniversário, estrelas cadentes, passar por debaixo de uma ponte, enfim, tudo o que implique em fazer um desejo, pois o dela sempre foi e é o mesmo: que seus pais voltem, e que seja logo.
Enquanto Analía executa sua tarefa transmitindo grande emoção, Albertina sorri muito contente, olhando pelo viewfinder, frente ao grande plano que conseguira captar. A utilização do preto e branco e do colorido para diferenciar “as duas Albertinas” (recurso bastante utilizado, principalmente na primeira metade da obra), longe de ficar piegas, acrescenta algo somente da ordem do perceptível que contribui muito para a fruição deste que é um dos grandes momentos do filme.
Outra seqüência maravilhosa derivada dessa opção (que é tão crucial para a diretora que faz ela se indispor com o Instituto Nacional de Cinema e Artes Visuais, o qual quando avaliou o roteiro a princípio se posicionou contra) é a final – ATENÇÃO: eu disse final, ou seja, quem ler vai saber o final do filme. Em uma paisagem campestre, que aparece diversas vezes ao longo do documentário e faz referência ao local onde Albertina e suas irmãs foram morar quando a família parou de receber as cartas de seus pais enviadas da prisão, a “Albertina fake” caminha por uma estrada de terra/lama, se afastando da câmera, praticamente desaparecendo de quadro. Ela ostenta uma peruca loira, que passou a acompanhá-la após alguns ex-vizinhos entrevistados se referirem a família como “Los Rubios”.
Em seguida a equipe interrompe a gravação e, também eles, também com perucas loiras, pegam a estrada e desaparecem. Surgem os créditos com os nomes principais e a imagem retorna. São Albertina, a “verdadeira” e a “falsa”, sendo que a primeira ensina a segunda a cavalgar para poder melhor interpretá-la.
Para finalizar, cabe dizer que este é um filme muito interessante e complexo, que se presta a diversas análises (que não farei por falta de linhas, não de interesse), e esta é apenas uma delas.

Sunday, June 15, 2008

La otra conquista


A escolha deste país foi motivada pela assinatura do Plano México, que infelizmente se assemelha ao nosso já velho conhecido Plano Colômbia não somente no nome...

“La otra conquista” (Salvador Carrasco, México, 1998) é, sem dúvida alguma, um filme com nome instigante. Como fica claro já no primeiro contato com a obra, esta se propõe a mostrar uma visão diferente daquela tradicionalmente apresentada sobre a chegada dos espanhóis nas hoje chamadas terras mexicanas e dos fatos que se sucederam após o ‘encontro’.
No entanto, durante toda a sua duração, foi impossível não me perguntar reiteradas vezes: que outra história o diretor/roteirista pretendeu contar? E em que medida a trama que acompanhamos na tela é outra?
Apesar de ter encontrado na crítica inúmeros elogios ao filme, ao terminar de vê-lo senti ter sido enganada. A outra história que tanto esperava simplesmente ficou na superfície. Sim, porque se acompanhando a ascensão dessas outras narrativas e o aumento do cuidado com a representação do outro o filme traz os indígenas falando em sua língua materna e atores com feições correspondentes a tal etnia interpretando-os, a crítica pára por aí.
Além disso, o que se vê é um conteúdo tradicional em um formato idem. Na verdade é ainda pior do que aparenta, pois se tem a impressão que a obra tentou ser Hollywood, mas não conseguiu. O fato de ser uma super-produção de época, clássica-narrativa, com fotografia rebuscada e pretensões realistas contrasta com planos esquisitos dentro do cânone mais tradicional do cinema e elipses que muitas vezes dificultam a compreensão do desenvolvimento da trama.
E a apregoada “outra conquista” nada mais é que uma versão da história já bastante conhecida. Em primeiro lugar, isenta a Igreja de sua responsabilidade. Quem erra são os governantes que agem em seu santo nome, e não seus representantes terrenos humanistas ou ainda seus santos (e aqui merece destaque a cena na qual a Virgem Maria chora ao ver Topiltzin ser acossado em praça pública).
Há também uma total desconsideração pelos problemas de dominação/subordinação que existiam no Império que os espanhóis ‘descobriram’. Do modo como é mostrado, parece que a paz reinava naquela localidade e não havia conflito anterior, o que dificulta a compreensão de uma série de relações de colaboração as quais se estabeleceram na época e que o filme apresenta em termos de caráter ou falta dele.
Por fim, o discurso da obra nos leva a concluir que o México de hoje é uma mescla homogênea e não problemática da cultura autóctone com a forânea, em um processo extremamente violento, mas que ao fim conseguiu ser superado e conjugou o melhor de cada uma delas. Assim, os espanhóis conseguiram neutralizar os sacrifícios humanos que eram realizados, ao mesmo tempo em que tiveram as justificativas para sua violência
abaladas.

Sunday, June 1, 2008

A estratégia do caracol

Sylvia Duzán, colaboradora de “A estratégia do caracol”, foi assassinada por paramilitares logo após o término das filmagens, enquanto gravava um documentário jornalístico. Isso só reforçou minha certeza de começar as postagens com um filme colombiano (e, especificamente com este) alguns dias depois que o mundo soube que Marulanda se foi.

“A estratégia do caracol” (Colômbia, 1994) é o quarto filme do diretor Sergio Cabrera e um de seus grandes sucessos. Exibido em diversos festivais ao longo do mundo e vencedor de prêmios importantes, esta comédia dramática com toques de realismo fantástico conta uma história que se passa com um grupo de pobres em Bogotá, mas que poderia ocorrer em diversas outras partes do mundo. Explico-me.
Os moradores da Casa Uribe – que a habitam há décadas – enfrentam um proprietário que nunca sequer pisou no local, mas é influente e tem uma relação demasiadamente próxima com as autoridades, o que faz com que consiga burlar a lei quando esta lhe desfavorece. Depois que Romero, advogado que mora no casarão e é um dos líderes da comunidade, esgota todas as possibilidades judiciais, Jacinto, um velho anarquista espanhol exilado também residente no local, propõe uma estratégia.
A idéia é simples: se eles vão ter que deixar o espaço, que o deixem vazio, que carreguem a casa nas costas. Usando sua experiência com cenários de teatro, desenvolve um sistema de torres e engrenagens para que possam retirar sem suspeita absolutamente tudo o que há dentro dela. Vista em princípio com desconfiança, aos poucos começa a ganhar a adesão de todos, que se engajam na empreitada.
Conflito bastante comum ao redor do globo, a questão da propriedade privada X uso social da terra está no seio mesmo dos países ditos desenvolvidos. Em Paris, por exemplo, o número de imóveis vazios supera o de pessoas que não tem onde morar. Essa é uma das chaves que ajuda a compreender a empatia que esta obra conseguiu despertar em boa parte de suas platéias. Mas não a única.
É preciso considerar o momento histórico em que foi feita e exibida. A primeira metade da década de noventa foi o ápice da ressaca da crise dos paradigmas de esquerda que se materializou na queda do Muro de Berlim, ao mesmo tempo em que o mundo presenciava a escalada do projeto neoliberal. Se um filme com uma mensagem otimista e esperançosa das lutas sociais já destoaria, isso seria ainda mais forte se este fosse capaz de trazer em si os germes de alguns de seus caminhos mais frutíferos dali em diante. Era este o caso.
Vê-se em “A estratégia do Caracol” uma valorização de políticas anteriormente acusadas de “individualistas, de caráter pequeno-burguês, anarquistas e que não ajudam no processo”, segundo um dos próprios moradores da Casa Uribe. Qualquer semelhança entre estas críticas e aquelas dirigidas por setores da esquerda aos chamados novos movimentos sociais não são apenas mera coincidência. De fato, podemos encontrar eco para o principal argumento do espanhol ao defender seu plano (“não ganhamos nada, apenas nossa dignidade”) entre muitos povos na América Latina hoje que estão construindo novas formas de re-existências.
A película ainda tem o mérito de ser perspicaz no retrato das ambigüidades contidas nas ações dos populares. Se eles não são militantes-modelo, nem por isso deixam de fazerem seus pequenos danos aos que consideram seus adversários. A discreta quebra do limpador de pára-brisa do carro dos policiais, a rede de informantes que o advogado teceu entre os empregados da justiça, tudo isso se aproxima muito do que apresenta De Certeau em seu “A invenção do cotidiano”.

Contudo, embora seja claramente simpática ao povo, a história não o endeusa. Há aqueles moradores que terão que ficar sem suas “atividades perigosas” porque não podem atrair a polícia para dentro do casarão durante o período de execução do plano, aqueles que dependem e consultas religiosas para aprovar a estratégia... Apesar disso, pode-se afirmar que no final fica provado (na verdade, desde o início) que de alguma maneira a estratégia do caracol serviu de aprendizado, pois Gustavo, o narrador do filme, conta o que viveu a um repórter. Seis anos se passaram, e ele se encontra resistindo a um outro despejo.