Sunday, September 7, 2008

Deus e o Diabo na Terra do Sol

Muitas vezes se fala de cinema latino-americano como se o Brasil não participasse de tal recorte – o que, aliás, não é uma exclusividade dessa área. Na maioria das vezes o país está mesmo de costas para seus vizinhos mais próximos, lembrando dos mesmos apenas quando há a ameaça da atuação de algum deles afetar diretamente seus interesses geopolíticos.

Para não reforçar o erro que se está criticando, o filme do texto de hoje é brasileiríssimo/latiníssimo. Um dos grandes ícones do cinema da região, possuidor de algumas seqüências conhecidas por cinéfilos do mundo inteiro: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964).

Como fazer análises sobre a referida obra é um exercício que vem sendo repetido desde o seu lançamento, e na verdade há muito pouco de novo a se dizer sobre ela a partir deste viés, resolvi apontar quais são, em minha opinião, os momentos que a tornam antológica, e os porquês.

Citaria, primeiramente, a seqüência na qual o ex-vaqueiro agora beato Manuel carrega uma pesada pedra morro acima, tendo por objetivo conseguir chegar com ela até o interior da igreja e assim provar a sua fé. Sem dúvidas há diversas elipses na montagem, mas esta, aliada à duração dos planos, à atuação de Geraldo Del Rey e à repetição da mesma ação dão ao espectador a sensação de tempo real.

Um tempo real angustiante, penoso, de sacrifício, como é o tempo das penitências. E suportar esta sucessão de planos não deixa de ser algo semelhante para aqueles que se dispõe a acompanhá-la. Mescla de imolação e gozo, nosso e do protagonista com o qual estamos identificados.

Pouco tempo depois, surge na tela o segundo trecho que avalio merecer tamanho destaque: o sacrifício do inocente para lavar a alma do condenado. Rosa, a mulher de Manuel, não faz nenhuma questão de esconder sua descrença em Sebastião, que, ao invés de castigá-la, se propõe a salvá-la através da purificação com o sangue de uma criança.

Assim, se encontram à frente de um altar/palco o santo, o casal e o ser do qual se tirará a vida. A tensão é crescente, embora se suspeite não se sabe exatamente o que Sebastião, que agora maneja um punhal benzido, fará. Infelizmente, o enquadramento, a escala de plano e o ângulo de filmagem prejudicam esta seqüência em um de seus momentos principais. Mas em seguida o filme se recupera, já que Antônio das Mortes chega ao Monte Santo e mata todos os fiéis que ali estão. Ele poupa apenas Manuel e Rosa, os quais encontra acuados ainda dentro da igreja. Nesse instante todos os elementos que não foram combinados de modo tão feliz na hora da morte da criança estão impecáveis, e o vigor e força de Deus e o Diabo conhecem aqui uma de suas mais fortes materializações.

Se as duas primeiras envolvem o universo messiânico, as outras duas selecionadas se passam na fase cangaço de Manuel e Rosa. É lugar comum elogiar a atuação de Othon Bastos como Corisco. Ainda assim é impossível não mencioná-la, em especial quando, com apenas seu corpo (ou partes dele) em quadro, refaz a última conversa que teve com Lampião. Os movimentos de câmera são, contudo, tão importantes para o êxito desta parte da obra como a própria performance do ator.

Assim como quando o novo bando de Corisco aparece para se vingar no casamento do filho de um homem que o havia humilhado. Talvez seja o momento no qual os atores em seu conjunto (já que individualmente há outros de destaque) mostram maior expressividade dramática, mas os planos apenas funcionam porque a montagem alterna entre gerais e de conjunto, dando a oportunidade do espectador entrar no transe através de seus múltiplos focos.

Definitivamente, falar de Deus e o Diabo é um clichê. Mas sempre muito prazeroso!



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