Sunday, June 1, 2008

A estratégia do caracol

Sylvia Duzán, colaboradora de “A estratégia do caracol”, foi assassinada por paramilitares logo após o término das filmagens, enquanto gravava um documentário jornalístico. Isso só reforçou minha certeza de começar as postagens com um filme colombiano (e, especificamente com este) alguns dias depois que o mundo soube que Marulanda se foi.

“A estratégia do caracol” (Colômbia, 1994) é o quarto filme do diretor Sergio Cabrera e um de seus grandes sucessos. Exibido em diversos festivais ao longo do mundo e vencedor de prêmios importantes, esta comédia dramática com toques de realismo fantástico conta uma história que se passa com um grupo de pobres em Bogotá, mas que poderia ocorrer em diversas outras partes do mundo. Explico-me.
Os moradores da Casa Uribe – que a habitam há décadas – enfrentam um proprietário que nunca sequer pisou no local, mas é influente e tem uma relação demasiadamente próxima com as autoridades, o que faz com que consiga burlar a lei quando esta lhe desfavorece. Depois que Romero, advogado que mora no casarão e é um dos líderes da comunidade, esgota todas as possibilidades judiciais, Jacinto, um velho anarquista espanhol exilado também residente no local, propõe uma estratégia.
A idéia é simples: se eles vão ter que deixar o espaço, que o deixem vazio, que carreguem a casa nas costas. Usando sua experiência com cenários de teatro, desenvolve um sistema de torres e engrenagens para que possam retirar sem suspeita absolutamente tudo o que há dentro dela. Vista em princípio com desconfiança, aos poucos começa a ganhar a adesão de todos, que se engajam na empreitada.
Conflito bastante comum ao redor do globo, a questão da propriedade privada X uso social da terra está no seio mesmo dos países ditos desenvolvidos. Em Paris, por exemplo, o número de imóveis vazios supera o de pessoas que não tem onde morar. Essa é uma das chaves que ajuda a compreender a empatia que esta obra conseguiu despertar em boa parte de suas platéias. Mas não a única.
É preciso considerar o momento histórico em que foi feita e exibida. A primeira metade da década de noventa foi o ápice da ressaca da crise dos paradigmas de esquerda que se materializou na queda do Muro de Berlim, ao mesmo tempo em que o mundo presenciava a escalada do projeto neoliberal. Se um filme com uma mensagem otimista e esperançosa das lutas sociais já destoaria, isso seria ainda mais forte se este fosse capaz de trazer em si os germes de alguns de seus caminhos mais frutíferos dali em diante. Era este o caso.
Vê-se em “A estratégia do Caracol” uma valorização de políticas anteriormente acusadas de “individualistas, de caráter pequeno-burguês, anarquistas e que não ajudam no processo”, segundo um dos próprios moradores da Casa Uribe. Qualquer semelhança entre estas críticas e aquelas dirigidas por setores da esquerda aos chamados novos movimentos sociais não são apenas mera coincidência. De fato, podemos encontrar eco para o principal argumento do espanhol ao defender seu plano (“não ganhamos nada, apenas nossa dignidade”) entre muitos povos na América Latina hoje que estão construindo novas formas de re-existências.
A película ainda tem o mérito de ser perspicaz no retrato das ambigüidades contidas nas ações dos populares. Se eles não são militantes-modelo, nem por isso deixam de fazerem seus pequenos danos aos que consideram seus adversários. A discreta quebra do limpador de pára-brisa do carro dos policiais, a rede de informantes que o advogado teceu entre os empregados da justiça, tudo isso se aproxima muito do que apresenta De Certeau em seu “A invenção do cotidiano”.

Contudo, embora seja claramente simpática ao povo, a história não o endeusa. Há aqueles moradores que terão que ficar sem suas “atividades perigosas” porque não podem atrair a polícia para dentro do casarão durante o período de execução do plano, aqueles que dependem e consultas religiosas para aprovar a estratégia... Apesar disso, pode-se afirmar que no final fica provado (na verdade, desde o início) que de alguma maneira a estratégia do caracol serviu de aprendizado, pois Gustavo, o narrador do filme, conta o que viveu a um repórter. Seis anos se passaram, e ele se encontra resistindo a um outro despejo.

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