Sunday, June 7, 2009

El coronel no tiene quien le escriba


E o governo mexicano deportando para a Colômbia?

Gabriel García Marquez é o meu escritor favorito. Arturo Ripstein, um dos grandes diretores da história do cinema mexicano. Logo, as expectativas em relação a “El coronel no tiene quien le escriba” (México/Espanha/França, 1999) não podiam ser outra coisa senão enormes.
Precisamente por isso, começo este texto destacando aquela que eu considero ser a grande falha do filme e que, de fato, me incomodou o tempo inteiro: a caracterização da mulher do coronel. Excelente atriz no papel de um personagem bem construído, Marisa Paredes vê seu desempenho prejudicado por uma maquiagem pífia a qual nem todo realismo mágico do mundo poderia salvar.
No entanto, é preciso ressaltar que, se a equipe de arte peca neste aspecto, todo o resto, e em especial os interiores das casas, são primorosos. A decadência, a melancolia e a desilusão estão por todas as partes – mesmo junto a aqueles que são “bem-sucedidos” (o compadre do coronel, o padre, Nogales). Uma execução extremamente afinada com a leitura que o realizador faz do livro.
A fotografia é outra área que merece muitos elogios. Os movimentos de câmera – e destaco aqui os executados em peças com espelhos – conferem uma dramaticidade impressionante às sequências, que já seriam, em geral, bastante fortes por si só. A única ressalva que creio poder fazer é a subutilização do céu nos diversos planos em que o coronel espera o correio. Na beira da água, ao amanhecer, em alguma zona “Caribe”, nunca seria demais.
No que diz respeito ao roteiro, este parece estar no nível da obra original (que é bem alto, diga-se de passagem). Paz Alicia Garciadiego fez um trabalho de adaptação impecável. Encontra-se, no filme, tudo aquilo que há de relevante no livro e, o que é mais importante, a sua essência. Por isso a inserção de outras histórias e de novos elementos que conferem a sustentação deste longa-metragem são naturais a ponto de um espectador não familiarizado com a obra de Gabo nem perceber o que é original e o que foi adicionado posteriormente.
Como seria de se imaginar, a versão cinematográfica de “El coronel no tiene quien le escriba” é lenta, mas não arrastada. Os tempos mortos participam como personagens a mais da narrativa, sem, contudo, chegarem em momento algum ao papel principal. O ritmo é mantido o tempo todo e as escolhas de decupagem são bastante coerentes com ele.
Nesta história onde um coronel que lutou pelo México espera há décadas por uma aposentadoria que o Estado, já o tendo esquecido há bastante tempo, nunca vai conceder, onde um casal perde seu filho em última instância por motivações políticas, e onde um galo pode ser, ao mesmo tempo, esperança, companhia e a memória do herdeiro que partiu a sensibilidade está sempre à flor da pele. O que acaba contagiando a nós, espectadores.
Por “El coronel não tiene quien le escriba”, Arturo Rispstein foi indicado para a Palma de Ouro do Festival de Cannes e ganhou o Goya de melhor diretor da América Latina. Paz Alicia Garciadiego, diga-se de passagem esposa do diretor e autora de outros roteiros arrebatadores, como Porfundi Carmesí, concorreu ao Goya de melhor roteiro adaptado, prêmio que infelizmente não ganhou.
Um último comentário sobre “El coronel no tiene quien le escriba” do cinema. É impressionante como a história funciona de metáfora para a sociedade mexicana pós-revolucionária. Vê-se, através do que aconteceu com cada um dos personagens (combatentes, religiosos, sociedade civil), e também de seus comentários, a dura análise que o diretor faz dos descaminhos de seu país no século XX.
Por tudo isso, é possível afirmar que “El coronel no tiene quien le escriba” é um grande filme, feito por uma grande equipe.

Monday, May 25, 2009

Un crisantemos estalla en cinco esquinas


Alguém pode me explicar como a Hebe Bonafini ainda defende o Kirchner?

Há muito tempo tentava assistir a Un crisantemo estalla en cinco esquinas (Argentina/Brasil/Espanha/França, 1998), o primeiro longa-metragem do aclamado diretor Daniel Burman – um dos grandes nomes da produção cinematográfica contemporânea que ficou conhecida como Nuevo Cine Argentino. É interessante o quanto acompanhar a obra de um artista de maneira errante pode levar o telespectador, e mesmo o estudioso, a conclusões ou teorias equivocadas. Embora nunca tenha desenvolvido nenhuma análise mais aprofundada sobre as produções deste realizador, assisti a todas que foram lançadas comercialmente no Brasil (Esperando al Mesias – 2000, El abrazo partido – 2003, Derecho de família – 2005 e Nido Vacío – 2008). Considerava, portanto, ter alguma autoridade para tecer considerações a respeito de sua trajetória. Até ver Un crisantemo estalla en cinco esquinas. Este filme não se passa nos dias de hoje, nem em uma grande cidade, nem neste século ou mesmo no passado. Sua estrutura não é clássico-narrativa, seus planos não estão ordenados de modo a estabelecer relações de causa e conseqüência, sua direção de arte e sua fotografias não são realistas. Não que nos outros filmes citados não pudesse ser encontrada, vez ou outra, alguma dessas características. Contudo, todas juntas, e com tal intensidade, parecia algo inédito – a despeito de, como já foi falado, ser uma ópera prima. Ao contar uma história de gauchos, na qual Erasmo, o protagonista, não conseguindo escapar da guerra (seus pais o abandonaram para fugir dela, sua mãe de criação é violentada e morta por participante dela) ingressa em suas fileiras para fazer justiça com as próprias mãos, Burman adota um estilo e uma narrativa que abandonará completamente em seus passos ulteriores. Uma opção que deve ter se pautado nas preferências do autor, posto que Un crisantemo estalla en la esquina é bastante bem-sucedido em sua fuga das convenções do cinema hegemônico. O que com certeza não acontece por acaso, já que se trata de um grande cineasta e que, ainda por cima, está muito bem acompanhado. Refiro-me especificamente a Esteban Sapir, que desempenha os papéis de diretor de fotografia e operador de câmera. Como Burman, se trata de um jovem diretor. Como Burman, começou sua carreira no começo dos anos 1990 e, de lá para cá, realizou um número expressivo de obras. A grande diferença entre ambos, que determina que apenas um seja conhecido, ao menos do público cinéfilo internacional, é o fato de Sapir ser filiado ao gênero experimental, com o qual o realizador de Un crisantemo estalla en cinco esquinas no máximo flerta em suas obras subsequentes. Uma curiosidade sobre esta realização é que, se na maioria dos quesitos é bastante singular, identifica-se nela algo que atravessa toda a cinematografia de Burman: a presença judaica. O protagonista de El Abrazo Partido, o destino do casal principal de Nido Vacío, entre tantos outros elementos os quais podem ser facilmente constatados, podem encontrar suas origens no curioso papel interpretado por Martin Kalwill. Agora, após Un crisântemo estalla en cinco esquinas, entendo melhor a resposta de Burman a um jornalista que o questionava por estar se afastando da “temática da crise”: “creio que essa pergunta revela um preconceito eurocentrista de que os diretores de países subdesenvolvidos devem mostrar em todos os seus filmes o quanto somos subdesenvolvidos. Ninguém cobra dos diretores franceses que eles mostrem as pessoas queimando carros nos Champs Elysées, mas isso tem ocorrido com muita freqüência lá.”. Talvez a revolta do cineasta – plenamente justificada – tenha a ver com o fato de, desde o início, ter transitado por outros terrenos. A gente que não sabia...

Sunday, May 10, 2009

Tony Manero

E se o novo presidente do Chile fosse filho de desaparecido da ditadura Pinochet?

Quando vi entre os filmes em cartaz o nome Tony Manero (Chile, 2008) e li a sinopse do mesmo decidi que iria vê-lo. Além de parecer interessante, também me soou engraçada a história de um homem que, em tempos de ditadura Pinochet, conseguisse pensar apenas em se tornar o famoso personagem de John Travolta nos Embalos de sábado à noite.
Bom, engraçado não é exatamente um adjetivo com o qual se possa definir a obra de estréia do diretor Pablo Larraín. Como disse um amigo que me ligou quando estava já a caminho da sala de cinema, trata-se antes de tudo de uma produção “estranha”.
Raúl Peralta (excelente interpretação de Alfredo Castro, que pelo papel ganhou o prêmio de melhor ator no festival de Havana do ano passado), um homem de meia-idade, vive em uma casa/cortiço/bar com os demais atores com os quais trabalha e com uma mulher mais velha que parece ser a proprietária do estabelecimento. São relações truncadas, não-ditas, que vão se revelando muito aos poucos ao espectador.
Incapaz de dar um sorriso e de fazer qualquer outra coisa que não seja lutar para se tornar Tony Manero, passa por cima de todos aqueles que possam atrapalhar seu caminho. O que pode significar desde matar o homem que está se aproveitando de sua fixação para lhe cobrar um preço acima do mercado por blocos de vidro até dormir com a filha de sua parceira.
Esta, aliás, também é outra personagem que vai se revelando doente durante a narrativa. Vive propondo a Raúl que eles abandonem o restante do grupo e formem um número só deles, suporta todo tipo de humilhação que ele a submete e chega ao extremo de denunciar a própria filha – e consequentemente o outro ator do espetáculo – no dia seguinte em que ela se envolve com seu amado.
Vale dizer, a inserção do contexto repressivo se dá de forma muito interessante no filme. Cometendo atos ilícitos, o protagonista diversas vezes precisa se esconder da polícia, que patrulha incessantemente as ruas. Em uma delas, presencia o assassinato de um militante anti-Pinochet. Como seria de se esperar, ao invés de ficar minimamente abalado com o ocorrido, o Tony Manero chileno rouba os pertences de valor do morto.
Contudo, se Raúl é indiferente ao que está acontecendo a sua volta, não se pode dizer o mesmo de todos. A dona do espaço onde todos habitam, por exemplo, é declaradamente a favor do governo militar. Já os mais jovens se engajam na luta contra a repressão. O que, apesar de seus esforços, é percebido pelos outros.
Certos aspectos da linguagem também contribuem para afastar a obra daquilo que tradicionalmente se encontra nas grandes telas dos exibidores comerciais. O primeiro que aparece, e talvez o que mais salte aos olhos, é o foco. Diversos planos simplesmente não o tem. E não há nenhuma justificativa diegética para isto. Não são planos ponto-de-vista de um personagem que está com a visão turva, por exemplo.
Além disso, a decupagem não segue regras muito convencionais. Merece destaque uma cena de sexo entre Raúl e Cony na qual os diálogos obedecem a uma ordem lógica mas a movimentação da atriz não. Ela faz uma pergunta colada nele, mas quando ouve a resposta já está em uma poltrona. E fica claro que o homem não hesitou ou demorou a responder.
É de se imaginar que Tony Manero não faça uma grande bilheteria. Em sua segunda semana já estava em apenas uma sala e em um só horário. Boca a boca é algo fundamental para qualquer produção, em especial aquelas sem grandes recursos para investir em propaganda. E sem agradar boa parte – para não dizer a maioria – do público, tudo fica ainda mais difícil.
Da minha parte, faço coro à frase do The Times London estampada no cartaz: “Wonderfully Bizarre”.

Sunday, April 26, 2009

De cierta manera


Em homenagem ao país que, mais uma vez, é o grande hit da Cúpula das Américas.

Sara Gómez, realizadora de De cierta manera (Cuba, 1974), é uma figura única do cinema latino-americano. Praticamente desconhecida mesmo entre os latinófilos, esta mulher foi a primeira diretora de cinema que filmou pelo Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos – em uma época na qual, ao menos pelas bandas de cá do Atlântico, este era um território basicamente masculino.
Para se ter idéia do que isso significava, basta dizer que durante décadas ela foi a única a ter alcançado tal posto. Como se não bastasse, Sara ainda era negra, o que, para todos os países, dispensa maiores comentários. Parece transgressão demais para uma única pessoa? Pois então passemos ao filme.
De cierta manera opera nos níveis documental e ficcional, alternando e contaminando características de um e de outro gêneros. As transições entre ambos são a principal estratégia anti-ilusionista desta obra – característica bastante corriqueira de um certo tipo de cinema contra-hegemônico da época.
Logo no início Sara apresenta ao espectador uma cartela sobreposta à imagem na qual informa: “película de largometraje sobre algunos personajes reales y otros de ficción”. O que fornece subsídios para a criação de sequências maravilhosas, como a que o casal protagonista, durante uma briga na rua, encontra um amigo do rapaz. Após apresentá-lo para a moça, a narrativa é interrompida por uma pergunta sobre fundo branco: “¿ Quién es Guillermo?”. Tem início uma mini-reportagem sobre quem é, na verdade, aquele “ator”.
No campo temático, De cierta manera toca em alguns dos temas mais complicados para a Revolução naquele momento e hoje: o marginalismo e o machismo. Em relação ao primeiro, é muito claro o discurso das esquerdas daquele tempo – o qual foi solapado pelo papel protagônico que o “lumpenproletariado” assumiu nos últimos anos em nossa região.
Já no que diz respeito ao segundo, o conforto em relação aquilo que está sendo postulado pelo filme é muito maior. Voltando às origens da ilha para descobrir, tanto na cultura dos escravos como na dos espanhóis, os fatores que contribuíram para uma exclusão da mulher que em certa medida ainda perdura(va), se procura explicar tamanha falha dentro de um contexto revolucionário. Esta tarefa, séria, revestida de um caráter quase sociológico, cabe ao documentário.
Para a ficção compete demonstrar como o machismo se manifesta nas relações cotidianas e suas conseqüências, tanto no nível individual como no coletivo. Mario fornece no desenvolver da história alguns bons exemplos através de seu comportamento por vezes grosseiro e quase truculento. Yolanda, que não tem nenhuma tolerância a tais rompantes, praticamente ensina às espectadoras o que fazes nestes casos.
O curioso é que ela própria não é capaz de reconhecer este tipo de relação em uma escala maior. Professora e oriunda de uma família, segundo suas palavras, “con recursos”, é totalmente insensível ao fenômeno das mães solteiras, das chefes de família e da jornada dupla das mulheres. O que faz com que ela emita julgamentos implacáveis sobre/para a mãe dos alunos.
Ou seja, Sara Gómez além de tudo ainda era uma cineasta feminista. Crítica o suficiente para personificar (também) em uma mulher o machismo. De cierta manera não traz, portanto, aquelas análises rasas onde todo mundo do sexo feminino é mocinho (ou melhor, mocinha) e todo mundo do sexo masculino é vilão.
Sua lucidez também foi grande o suficiente para reconhecer que os fenômenos dos quais estava tratando estavam por demais arraigados para que pudesse haver um final feliz, embora interpreto que seja possível sair da experiência da exibição com ele apontado no horizonte. Afinal, como os 14 documentários que realizou, Sara dirige esta que foi sua última obra em prol de uma causa – na qual parece que acreditava muito.

Tuesday, April 14, 2009

Di buen día a papá


Quem manda atrasar o texto? O Evo Morales já encerrou sua greve de fome.

Di buen día a papá (Argentina/Bolívia/Cuba, 2005), filme dirigido por Fernando Vargas, não apresenta uma história, e sim uma rede de histórias. E, muito mais que o fato de todas elas se passarem em La Higuera, Bolívia, o que realmente as une é a relação que cada uma desenvolve com a figura de Ernesto Che Guevara, morto em tal localidade em 1967.
A fim de caçar o guerrilheiro, diversos militares do exército boliviano são deslocados para a região. A jovem Eva conhece e se apaixona por um deles. Este, porém, não cumpre sua promessa de casamento e vai embora assim que a missão é dada por encerrada, deixando a moça grávida de uma filha do vento.
Dez anos depois, no dia dos mortos de 1977, as famílias que têm algum vínculo com os militares que participaram do assassinato do argentino recebem uma carta alertando sobre a maldição do Che. Para escapar dela, a solução seria rezar por sua alma. Mamina, mãe de Eva, não dá importância ao alerta, até porque tem verdadeiro ódio do pai da menina Ángeles, não se importando com o que aconteça com ele.
Ocorre que quem some é sua neta, a qual só volta para casa depois que a matriarca não apenas ora por ele, mas também lhe oferece comida – reza a lenda no povoado que Che foi capturado porque estava caminhando faminto atrás de algo para comer. A partir de então, a casa inteira vira devota do santo milagroso.
Após outro salto de uma década acompanha-se a chegada de um ônibus de estrangeiros à cidade. Seu objetivo é organizar uma homenagem ao Comandante por conta do aniversário de sua morte. É interessante observar que boa parte deles já conta com alguma peça em seu vestuário que estampe a famosa imagem de Korda manipulada pelo artista plástico Jim Fitzpatrick.
Sucessivos desentendimentos marcam a breve passagem do grupo por La Higuera. Com exceção do prefeito, há conflitos com os militares do local, com jovens nacionalistas e com o noivo de Ángeles – que, diga-se de passagem, vai embora com eles quando deixam a região.
Por fim, chega-se a 1997. Por ordem do governo federal começa uma nova caçada a Che Guevara; na verdade, dessa vez o que está sendo procurado são seus ossos. Instaura-se um impasse: a instância máxima de decisão do país deliberou devolver os restos para a família, mas a população está disposta a fazer de tudo para que estes permaneçam em seu território. Assim, mudam as sinalizações de lugar, fornecem pistas erradas, tudo para que o santo guerrilheiro continue lá.
Não é difícil perceber que Di buen día a papá é uma espécie de Personal Che da ficção – e realizado antes deste, é claro. Ainda que aquele não viaje para distintos lugares distantes entre si, também ficam muito claras algumas das diferentes apropriações que são feitas da história e da imagem de uma das mais famosas personalidades do século XX: o santo de Mamina e Eva, o herói dos jovens estrangeiros, o inimigo do país para militares e nacionalistas, a possibilidade de ascensão econômica através do turismo, vislumbrada pelos políticos...
Além disso, impressiona a simplicidade do universo que está sendo retratado, e é muito difícil não ser contagiado pelo olhar extremamente afetuoso que o diretor lança para os seus personagens, em especial para os habitantes de La Higuera. E cabe ressaltar que, apesar de não ser o foco principal nem da narrativa nem desta análise, algumas críticas bastante contundentes são tecidas sobre a Bolívia, quando, por exemplo, um militar lembra que o mesmo Exército que enterrou Che agora está desenterrando-o.
A única coisa que compromete – e muito – Di buen día a papá é a caracterização da passagem do tempo nas pessoas. Sucedem-se três décadas e pelo menos os adultos estão exatamente iguais ao que sempre estiveram. Uma pena, porque não só demonstra falta de cuidado na produção, mas também complica o entendimento das histórias.

Monday, March 30, 2009

Crónica de un niño solo


E com vocês, mais um episódio da pinguina versus os ruralistas...
Ah, mais uma vez atraso de postagem por causa do blogger.

A sociedade argentina, desde meados da década de 1940, estava dividida em peronistas e não-peronistas, alternando momentos de vitória entre uns e outros. Essa polarização e toda discussão trazida por ela em torno de questões como o nacional, o popular, relação com o exterior, entre outros pontos polêmicos, contribuiu decisivamente para uma espécie de “descoberta” de diversos setores até então esquecidos – e em alguns casos menosprezados - por artistas e intelectuais.
Leonardo Favio, o diretor pouco conhecido de Crônica de un niño solo (Argentina, 1965) e que de certa maneira pertencente a este movimento, possui uma trajetória bastante interessante. Sua relação com o cinema começa através do seu talento como ator. No entanto, até alcançar essa posição, passou por situações bastante difíceis e desconfortáveis; chegou a passar fome, e esteve por um tempo em um seminário, além de ter conhecido a cadeia.
Coincidência ou não, seu primeiro longa-metragem acompanha a vida em uma instituição para menores, em especial Polin, um que consegue escapar e pode aproveitar alguns momentos em liberdade. No entanto é bom aclarar que Crônica de un niño solo não é um filme autobiográfico, e sim parte de uma trilogia cujo elo não está em personagens ou na temática, e sim em uma abordagem com fortes marcas do neo-realismo a diversos temas de interesse do referido movimento.
Poder-se-ia desmembrar a obra em duas partes e um epílogo. A primeira apresentaria ao público a vida das crianças na clausura, submetidas a uma disciplina férrea. Na verdade, mais que de uma apresentação, seria correto falar de uma tentatia de transposição da realidade. Todos os elementos cinematográficos são orquestrados com uma incrível precisão para que o espectador sinta todo o tédio, a desesperança, o cotidiano dos que estão “dentro”.
A demora na individualização das crianças (inclusive a espera pela definição de quem é na realidade o protagonista do filme) e um feliz uso dos silêncios e das ações em seu tempo integral transmitem toda a opressão e o fastio daquelas existências. Além disso, há um reforço dado pela fotografia de Ignácio Souto através de um jogo de contrastados claros e escuros, simetrias e duras sombras projetadas na parede, que muitas vezes constituem formas geométricas capazes de encerrar ainda mais o ambiente.
Essa etapa do filme contém aquela que é provavelmente a sua mais hipnotizante cena: a fuga de Polin. Através de lentos planos-seqüência (que somam mais de dez minutos), o filme mostra as tentativas do garoto para abrir o trinco da porta com seu cinto, seu êxito, os momentos de indecisão depois de conseguir aquilo que considerava impossível e finalmente sua saída para a rua. Um desses raros momentos em que ritmo, plano e contraplano e alternâncias de foco se encontram com perfeição.
O momento seguinte do filme traz a busca do protagonista pela sua liberdade. Ele toma um trem, furta o dinheiro de um senhor que dorme, e chega uma região pobre e periférica. Suas gentes e paisagens humildes são tão enfatizadas que por alguns segundos se convertem nos personagens centrais. Planos abertos, câmera móvel e lugares bucólicos marcam a oposição entre essa nova fase e tudo o que se viu até agora.
A polarização, entretanto, tem uma curta duração. A natureza que traz a felicidade do banho de rio, de deitar-se nu na relva, das brincadeiras de criança se converte no palco da mais violenta cena do filme. A tão desejada liberdade revela uma face ainda mais perversa que o internato, e a procura de Polin, que se acreditava estar encerrada, talvez nunca chegue ao fim.
O epílogo se apresenta, ao mesmo tempo, como a revelação do fim e um retorno ao começo. A noite volta, e com ela a escuridão, a crua iluminação, mas também a possibilidade de alcançar os momentos de maior ruptura. Uma noite ambígua que pode equivaler-se à de sua fuga ou às muitas que passou na instituição para menores.

Sunday, March 15, 2009

Personal Che

O que significarão, exatamente, as mudanças anunciadas no governo de Cuba?

Personal Che (Brasil/Estados Unidos/Colômbia, 2007), documentário dirigido por Douglas Duarte e Adriana Marino, elege como seu tema principal um fenômeno facilmente perceptível nas ruas e que, até o momento, havia despertado poucas análises, pelo menos nas grandes telas: os diversos usos contemporâneos que estão sendo feitos da imagem do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara.
Para citar um exemplo bastante corriqueiro: aquela camiseta do guerrilheiro morto há mais de 40 anos que vende no camelô, na feira hippie, na internet e até em lojas de departamento, o que ela significa exatamente? É possível encontrar alguma semelhança no pensamento e nas práticas das milhares de pessoas que fazem uso dela todos os dias?
Através de entrevistas realizadas em países tão diferentes como Cuba, Estados Unidos, Bolívia, Alemanha e China, a dupla de cineastas começa a montar um mosaico de histórias que, no final do filme, permitirão ao espectador tirar suas próprias conclusões sobre como encarar o consumo massivo de uma figura história que dedicou quase toda sua vida a lutar contra a sociedade de consumo tal como a conhecemos.
Pode-se afirmar com toda segurança que os resultados por eles encontrados são no mínimo inusitados. Pessoas de extrema-direita, pessoas muito religiosas, pessoas que se consideram de esquerda, pessoas que afirmam não se interessar por política... Todas elas têm suas representações daquele que consideram ser um herói, assim como justificativas coerentes (ao menos dentro de suas lógicas) para a preferência por este personagem, e não por qualquer outro.
Desvendar cada um desses pequenos universos é um dos pontos altos deste filme, que tem também ao seu favor o ineditismo e a criatividade de sua proposta e, é claro, o inegável carisma de Che Guevara, capaz de fazer com que ninguém consiga ficar indiferente a ele.
Contudo, nem só de alegrias vive Personal Che. No seu nível formal, identifica-se a repetição de um padrão bastante comum no cinema brasileiro (e, vale dizer, também no mundial): a distinção entre a voz do saber e a voz da experiência, para usar uma nomenclatura de Jean-Claude Bernardet. Apesar de trazer algumas atualizações ao modelo de documentário sociológico tradicional, como não se valer da voz sobreposta e explorar a presença dos corpos dos realizadores em cena, a obra claramente reserva lugares distintos para sujeitos distintos. E qual é o critério de diferenciação, ou melhor, de hierarquização? A presença – ou ausência – dos entrevistados da academia. Aqueles a quem poderíamos chamar genericamente de “intelectuais” explicam a paixão dos outros. A estes cabe apenas narrar o que sentem, como sentem e que forma agem. Não lhes é solicitada uma reflexão sobre os por quês.
No nível ético, há em especial um momento do filme que é bastante controverso. Um dos diretores conta a uma senhora boliviana devota de Che Guevara (a quem chama carinhosamente de “alminha”) que seu santo era, na verdade, ateu e guerrilheiro. Fica muito evidente que o impacto de tal revelação é enorme e muito dolorido para ela, que fica muda durante alguns momentos – os quais, de tão constrangedores, conseguem deixar a plateia desconfortável.
É possível imaginar o dilema gerado pela sequência na hora da montagem. Se utilizada, poderia caracterizar Douglas Duarte como desrespeitoso e insensível para com os seus entrevistados. Se omitida, conferiria ao resultado final uma impressão de não-conflitividade que pode ter sido a regra, mas que contou com pelo menos esta importante exceção. A opção foi jogar o veredicto final para o telespectador. Concorde-se ou não com seu comportamento, ou mesmo com sua decisão, ela foi, é preciso destacar que foi ao menos, corajoso.